8 de set. de 2020

"É um insight soturno, é o futuro passando, na velocidade terrível da queda..."

Sobre a queda e outros demônios...


Naquele dia, caiu da bicicleta.

Na hora mesmo, não lhe pareceu nada demais, tombo leve, pouco machucou, o susto, impacto de deslizar sem controle, mãos e rosto encontrando com o chão.

Já dois dias depois, decidiu sair pra pedalar. Subiu na bicicleta, tentando ignorar e desconectar do corpo dolorido (sim, quarenta anos não são como os vinte, seu irmão não deixou passar...), tratou como mais um dia - um dia normal - fazendo aquilo que mais trazia prazer nos últimos meses, sentir o vento no rosto, a liberdade, a amplidão...

Não foi tão simples. A cada giro, a lembrança da queda, a sensação salgada e paralisante. O medo. Medo de repetir, a qualquer segundo, medo de uma pancada ainda pior, medo da curva, do desnível no asfalto, da velocidade... Medo de não ver o perigo, de não frear a tempo.

No início, tentou de todo modo racionalizar, dar proporção e advogar por si mesma: "você vem fazendo isso há meses, sem cair", "não está chovendo hoje", "aquela bicicleta era diferente"... Mas nada pareceu funcionar. Todos os argumentos tinham sentindo, mas vinha das entranhas o que gritava: "volte!", "pare!"... "você não é boa o suficiente, não tem o equilíbrio, a destreza, a prática... Vai cair", "desista". 

Ah, essa advogada é também cruel, soube transpor em pensamento o pânico, que ainda assim devorava mais que o verbo, secava a garganta e tensionava-lhe os ombros...

Seguiu em frente. Não sem chorar, algumas vezes, no caminho. Não sem doer as mãos, endurecer os dedos... E sempre com aquela voz ao fundo, da desesperança.

Mas ela era do ímpeto e dos planejamentos, algo não autorizava desistir... E decidiu ainda um novo desafio, um percurso maior, só pra garantir, só para não congelar...

A todo momento, o fantasma da sua queda a acompanhou. Entre as voltas do caminho, quase não achava o prazer e a alegria das saídas de antes, tentando parar o zumbido em seus ouvidos.

Pensou nos amores perdidos e nas dores do passado. Pensou em cada fratura de seu coração, nas ideias fixas de fracasso, nas vozes, no medo. Pensou no ímpeto e nos planos para não desistir.

Sentir o medo e continuar girando. O tremor e a taquicardia. O vento no rosto e a vontade de retomar a alegria.

Sua decisão era por novas memórias. Novas experiências que a afastassem da dor, o resgate, uma construção.

Memórias de vida que seguiriam, até que a queda estivesse cada dia mais distante, ocupando os vãos de espaços não-vazios. Até encontrar um novo ausente, até se dissipar, como fina névoa, entre as lembranças que quase já não conseguimos lembrar.



Foto: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjHApNLCAlZK9c1cTseF8UpnfLROuqq0MXSjLKXFbh8UrO6QksYmerSibLF36xTb8bFJUxe8Tcpl73KuwZcWIdVN1OBE9YCN4UZb1H_gV__oGTGItjD4Vvv9Kl-Ffxtii_IGrlL/s1600/bicicleta+montanhas.jpg

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